Nessa sexta-feira (17), a torcida do Corinthians testemunhou o desfecho de uma novela que, por sua vez, foi o desfecho de uma das maiores histórias recentes do Timão: a saga de 12 anos vivida pelo goleiro Cássio no clube. Uma história de muitos momentos excelentes, alguns percalços e repleta de conquistas e recordes, tudo muito bem reconhecido pela Fiel.
A saída de Cássio, que ocorre a seu pedido e sete meses antes do término de seu vínculo, não diminui a gratidão da torcida pelos seus serviços prestados. Não há um corinthiano sequer que se negue a ver no camisa 12 um dos expoentes máximos de um dos períodos mais vitoriosos do clube. Oito anos onde o Timão levantou nove taças: Libertadores (2012), Mundial (2012), Paulista (2013, 2017, 2018 e 2019), Recopa Sul-Americana (2013) e Brasileiro (2015 e 2017). E mesmo no jejum atual de títulos, o goleiro ainda teve muitos momentos de destaque.

Temos que falar, porém, sobre o elefante na sala. Um assunto que debatemos aqui, mas que no geral vinha sendo deixado de lado, e que o formato da despedida do goleiro fez com que nenhuma vista grossa desse conta de ignorar: a maneira fria como o goleiro lida com o fim de sua era no Corinthians. Um vídeo roteirizado, sem emoção, quase robótico, que fica longe de preencher o vazio no coração do torcedor. Nada de jogo festivo, ou um treino aberto, sequer um evento simples no Parque São Jorge. Não dá tempo – Cássio precisa se apresentar ao Cruzeiro, e aparentemente nada mais importa.
Não sabemos dos bastidores da sua rescisão, em que termos ela aconteceu, e por qual porta Cássio deixa o clube: a da frente ou a dos fundos. Muito se disse na mídia sobre seus motivos para fazer o que fez. Podemos apenas debater possibilidades. Teria Cássio ficado frustrado com tantos jogos na reserva após seu desabafo na Argentina? Se incomodou por ter que disputar posição no time titular? Seria algum problema pessoal e incontornável com António Oliveira? Teria simplesmente se cansado do Corinthians? Ou um pouco de tudo isso?
Podia ser diferente
O fato é que fica impossível não ter um sentimento de “não precisava ser assim”. E o silêncio sobre seus motivos para sair reforça isso, além de tornar ainda mais flagrante a discrepância entre sua tímida postura ao se despedir em relação à comoção das centenas de homenagens da Fiel Torcida e até de clubes ao redor do mundo. Isso sem falar nas múltiplas manifestações de respeito por parte até mesmo de torcedores rivais. Toda a situação se torna simbólica, e com muitas camadas.
Não são poucos os corinthianos que revelam ter pouca conexão com Cássio. Torcedores que nunca viram no goleiro alguém com o interesse de ser o líder que todos esperavam. Muitos o usam como exemplo de que há ídolos que são do clube, mas não necessariamente de toda a torcida. E talvez a parcela de torcedores com esse sentimento seja até maior, mas nem todos admitem isso. Afinal, não é algo fácil de se reconhecer em uma época onde toda opinião é julgada ferozmente.
Eu penso que o vídeo asséptico de despedida do goleiro, com doses mínimas de sentimento e zero aura de liderança, é um sinal de que a visão desses torcedores tem legitimidade. Mais que isso, penso que é um símbolo, de certa maneira, do que o futebol moderno fez com o conceito de idolatria, transformando-a em uma espécie de contrato de adesão.
Sabe quando você contrata um serviço, e precisa assinar um contrato de adesão? Você não pode mudar as cláusulas, não tem o poder de debater o que está ali. Se você assinar, aceita todas as condições. Se não aceitar alguma, não assina, mas também não leva o serviço. Da mesma forma, me parece que o Cássio acabou se tornando ídolo por tudo o que fez, mas nunca escolheu esse papel para si. Mas ele não podia dissociar isso do seu papel como jogador do Corinthians.
Afinal, é impossível não se tornar ídolo após se tornar titular em uma verdadeira fogueira e liderar sua equipe rumo à conquista de uma Libertadores inédita e, seis meses depois, do bicampeonato do Mundial de Clubes da FIFA. E cada título posterior só reforçaria esse status, até tornar o Cássio um dos grandes da história do Corinthians. Não porque ele procurou isso, mas porque seu trabalho o elevou a esse patamar.
Idolatria no século XXI
Essa idolatria “moderna”, fortemente vinculada a títulos, acaba por dispensar o jogador de se identificar com esse papel. Dispensa o jogador, inclusive, até mesmo de se identificar com o próprio clube onde está. Não é como no passado, onde um ídolo se revelava em outras ocasiões. No início de nossa história, Neco chegou a roubar troféus para impedir que fossem penhorados, durante uma crise financeira do Corinthians. Já Idário, na década de 1950, escondia lesões para poder jogar e renovava seus contratos sem ler, pois para ele defender o Corinthians era o mais importante.
Claro, são exemplos extremos. Mas o ponto em si é que existem ídolos do Corinthians que chegaram a esse posto porque se identificaram com o clube, sua história e seus valores. Eles buscaram chegar lá, e acabaram conquistando esse reconhecimento por parte da torcida, como Sócrates. O orgulho em pertencer vem à frente do pragmatismo resultadista do “quantos títulos ganhou?”. Percebem a diferença?
Conclusões
Depois de toda reflexão, acredito que ficam duas conclusões. A primeira é a mais óbvia: independente do caminho que percorreu, ídolo é ídolo. Se o jogador procurou esse status, ou se ele recaiu sobre si por consequência da sua história no clube, o que fica é a história feita. E o julgador final é, e sempre vai ser, o torcedor corinthiano.
A segunda também é óbvia, mas mais difícil de dizer: Cássio tem todo o direito de não sentir sua idolatria da mesma forma que a torcida. Por mais que possa nos doer, ele não tem qualquer obrigação em se ver em um papel que não deseja, ou não reconhece, ou não acha que a essa altura da carreira é válido exercer. Ninguém é obrigado a cumprir com o que não prometeu. E Cássio nunca prometeu idolatria, ele prometeu entrega dentro de campo. E isso, ele fez de sobra.
Que Cássio tenha sorte no restante de sua carreira.
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